segunda-feira, 14 de abril de 2008

4ª Parte - Infâncias destruídas

A FUGA DA MINHA TIA MARTA

A filha mais velha do meu avô materno, que se chamava Marta, era muito bonita e cheia de encantos. Um dia, ao passar por sua fazenda, um homem do Estado da Bahia viu Marta, caiu de amores por ela e pediu-a em casamento ao meu avô. Apesar dela, na altura, ter apenas 12 anos de idade, o meu avô aceitou o pedido de casamento sem pensar duas vezes, pois ele próprio tinha feito o mesmo com a minha avó.

É claro que a Marta ficou desesperada e fugiu na mesma noite com a ajuda de dois dos irmãos mais velhos para um local que distava alguns quilómetros de sua casa. Eles fizeram um buraco no chão coberto de palhas para ela se esconder e levavam-lhe, todas as noites, água e comida depois de meu avô ter adormecido, sempre acompanhados por um dos cães da fazenda que adorava a Marta.



Mas passados alguns dias, em busca da Marta, o meu avô Frederico, descobriu que o cão não saía de uma certa zona da mata. Então ao aproximar-se mais do local onde o cão se encontrava, e chamando-o, percebeu que o cão não queria ir ter com ele, como se estivesse dividido entre querendo ir ter com o seu dono e ficar a guardar algo.

Foi desta forma infeliz que a coitada da Marta foi descoberta pelo seu pai insensível e mau, porque o cão acabou por denunciar involuntariamente a localização do referido buraco.



No dia seguinte, a Marta foi entregue ao fazendeiro pretendente e casaram ali mesmo, na fazenda, antes de partirem em direcção ao Estado da Bahia. Parece inacreditável que os padres casassem crianças tão pequenas com homens tão mais velhos mas, na altura, a lei da bala falava mais alto e era o domínio ditatorial dos coronéis que imperava.



Como é hediondo que uma mulher seja tratada assim como uma escrava pelo seu próprio pai, sem a mínima consideração pelos sentimentos da sua filha, que é sangue do seu sangue, e que tanto deveria amar…

Longe de sua família, Marta teve 4 filhos, e vivia miseravelmente infeliz pelo destino que lhe havia sido atribuído sem apelo nem agravo.



Todavia, ainda muito jovem, apaixonou-se por um empregado de seu marido que trabalhava na fazenda onde viviam. Envolvidos numa forte paixão, resolveram fugir em direcção ao Estado do Paraná, para refazerem as suas vidas, e ela deixou para trás o seu marido e filhos.



No entanto, pela casualidade do destino, Marta, sem saber, foi morar no mesmo vilarejo que a família dos seus pais, que não via há mais de 30 anos. Com efeito, os seus pais também haviam mudado do Estado do Ceará para o Paraná, a mais de dois mil quilómetros de distância.

Com o passar dos anos o meu avô começou a gastar demasiado em jogos e bebedeiras com os amigos e, com a ajuda da desvalorização da moeda brasileira, perdeu quase tudo o que tinha. Quando veio do ceará para o Paraná deixou de ser patrão para ser empregado. Desde então nunca mais se ergueu na vida.

Quando a Marta regressou ao Paraná foi morar para uma rua acima daquela onde os seus pais estavam a morar, sem fazer a mínima ideia. Um certo dia, o seu segundo marido, fez amizade com um dos irmãos mais novos de Marta, tendo calhado em conversa que tinham regressado do Estado da Bahia e que a mulher dele se chamava Marta, tendo deixado os seus pais no Ceará, facto que muito chamou a atenção do seu irmão. Após ter contado aos seus pais, estes correram a procurar a mulher que poderia eventualmente ser a sua filha. O acontecimento foi dramaticamente marcante pela tremenda alegria de um reencontro efectuado após trinta anos de separação.



Nessa altura, o pai de Marta já estava muito velho e cansado e tinha as filhas todas casadas. Nesta fase, o seu feitio estava mais amansado e ele já valorizava mais a presença dos filhos. Por isso, foi com grande alegria que o meu avô recebeu a filha que ele quis casar e despachar à força como se tratava na altura um bezerro.



A minha tia Marta nunca mais viu os seus filhos que deixou na Bahia, mas teve mais duas filhas da sua segunda relação conjugal.

Passados alguns anos, o segundo marido de Marta passou a ser-lhe infiel. Todas as noites ele saia de casa e a Marta, ainda por cima, tinha que lhe deixar roupas arrumadas sobre a cama, perfume e comentar se ele estava bem arranjado ou não, para os encontros com a sua amante. Noutras vezes, ele ainda lhe pedia dinheiro…

Apesar de Marta ter sido sujeita a uma cirurgia ao coração, algum tempo depois, ele continuou sempre a fazer-lhe a vida negra, desrespeitando-a sem quaisquer escrúpulos.

A Marta, mesmo na sua recuperação, trabalhava para ajudar no sustento da casa, mas, a partir de um certo ponto, não resistiu mais e decidiu deixar o marido para morar com uma das suas filhas, fruto desta sua segunda relação, que tinha acabado de se casar. A minha tia acabou por falecer alguns anos depois.



A TRAGÉDIA DE MARÍLIA

Durante os longos anos em que a minha tia Marta esteve longe, a vida da sua família continuou enquanto os meus avós tentavam casar, o quanto antes, duas filhas mais velhas que ainda viviam com eles, uma vez que as outras duas ainda eram muito crianças. Nessa altura, a mais nova tinha apenas acabado de nascer e estava só com uma semana de idade.



A Marília, de 5 anos, linda e fofinha como se fosse uma boneca, pedia constantemente para ver a irmãzinha bebé, mas os pais não permitiam porque achavam que ela era ainda muito nova para estar perto da bebé. Porém, Marília, numa certa noite, resolveu ir espreitar a sua irmãzinha, às escondidas dos pais, mas como naquele tempo não havia electricidade na fazenda, a minha tia Marília, com os seus cinco aninhos, levou consigo um candeeiro de chaminé de vidro com querosene.



Então, ao chegar junto da sua irmã bebé, para a ver melhor, inclinou-se e, sem querer, deixou cair o candeeiro em cima da bebé, que pegou fogo em grandes labaredas. Devido à enorme extensão das queimaduras, o bebé acabou por morrer poucas horas depois nos braços da irmã que viria a ser mais tarde a minha mãe adoptiva.



O meu avô ficou completamente louco e, enraivecido, espancou brutalmente a sua filha de 5 anos, agarrando-a por apenas um braço e estatelando-a diversas vezes seguidas contra a parede da casa.

Os meus tios mais velhos, que nunca desafiavam o seu pai, tiveram de interferir rapidamente e agarrá-lo para que ele não matasse a Marília.



Marília era tão inocente quanto o bebé que havia sucumbido naquele acidente, pois apenas queria ir ver a sua querida irmãzinha. Todavia, Frederico amaldiçoou para sempre a sua pequenina filha dizendo aos gritos que ela iria morrer cheia de feridas pelo corpo todo como se fossem queimaduras, e que iria sofrer noites e noites até morrer, para então pagar a morte que ela provocou naquele bebé indefeso.

O meu avô nunca mais falou com a Marília, e os anos foram avançando até que, quando ela completou 12 anos, a deu para se casar com um fazendeiro, chamado Joaquim, que por ali passara.



Marília viveu vários anos com Joaquim, de quem teve quatro filhos, mas como não o amava, acabou por se separar dele. Após alguns anos, ela encontrou o seu grande amor, chamado José, com quem se casou. Desse casamento nasceu o seu filho André, fruto desejado e gerado no seio de um grande e verdadeiro amor.



Ela descobriu a felicidade ao conhecer José, e que durou por muitos anos. Todavia, o destino veio silenciar Marília quando descobriram, já tarde demais, que ela tinha um cancro maligno que chegou para lhe tirar a vida. Foi um final de grande sofrimento para ela, pelo peso das dores horríveis e das feridas que lhe tomaram conta de todo o corpo. A minha tia sofreu como um cão, e a toda a minha família ficou revoltada pela praga que o meu avô lhe rogou. A minha tia era um ser humano excepcional, tolerante e dedicada a todos. Ela não merecia ter tido este fim.



Na manhã do dia em que ela morreu, por caso, telefonei-lhe e ela pediu-me muito para eu perdoar a minha mãe biológica, de quem ela se tinha tornado amiga por se ter compadecido com a sua situação.

Deixando no coração de todos a saudade, o carinho, a lembrança de alguém especial, de alguém que mesmo sozinha e distante do resto da família era feliz, alegre, divertida e amiga, guerreira, mulher que lutava pelos seus sonhos, amava o pai acima de tudo mesmo sem ele nunca ter querido falar com ela.

Apesar de ter visto a sua vida interrompida pela tragédia com a bebé, que lhe assolou o seu destino, e pelo ódio do seu pai, Marília teve ainda a oportunidade de encontrar a felicidade do amor que continua hoje a ser acarinhado e chorado pelo seu amado José.



Infelizmente, o destino teve de ser ainda mais cruel para o meu tio José, porque depois de terem passado três anos sobre a morte da sua amada, um enfarte de miocárdio levou para junto da Marília o seu filho André, interrompendo a sua vida com apenas 20 anos de idade.

Hoje, a vida do meu tio José é falar deles e sobre como eram felizes… Afogado nas suas dolorosas lembranças, continua a sua vida, a rir, a chorar e a dar-nos o seu amor!



A RECUPERAÇÃO DO MEU PAI ADOPTIVO

A minha mãe adoptiva, recebeu o convite do meu pai para casar com ele e ela aceitou. Depois do casamento tentaram ter filhos, durante cerca de 7 anos, mas sem sucesso.

O meu pai, passou por uma fase muito má e tornou-se alcoólico, desperdiçando dinheiro em bebidas e com os amigos. Todo o dinheiro que eles juntavam durante um mês inteiro, ele o gastava em bebidas, chegando frequentemente embriagado a casa.

Durante esse período a minha mãe foi muito paciente e o amor que tinham um pelo outro deu-lhe forças para suportar a situação.



Foi nessa altura que eu surgi na vida deles. Fui adoptada por eles e suas vidas mudaram. O meu pai recuperou o seu sentido de responsabilidade e se tornou num marido exemplar e um excelente pai.



Agarre as palavras e siga-me...

sexta-feira, 21 de março de 2008

3ª Parte - As raízes dos meus pais adoptivos

A ÍNDIA NEGRA

A mãe da minha bisavó paterna era uma índia pertencente a uma tribo instalada na zona da fronteira entre os Estados de Minais Gerais e da Bahia que, em circunstâncias que desconheço, foi violada por um português de quem ficou grávida. Passado algum tempo, ela acabou por ser aceite por um índio da sua tribo, com quem casou, e que a ajudou a criar a minha bisavó, que viria a nascer na sequência desse episódio traumatizante.



Por sua vez, a minha bisavó casou com um negro africano (que na altura ainda era ou teria sido escravo) e de cuja união nasceu a minha avó paterna. Nessa altura, a tribo em que viviam foi atacada e, como resultado, a minha avó paterna teve de fugir pela selva a dentro onde passou a viver escondida como um bicho.

Um dia, o meu bisavô paterno, que era de nacionalidade italiana, ao percorrer um trilho na selva, enquanto se encontrava em viagem, descobriu esta índia e, ao ver que ela ia a fugir, atirou-lhe um laço para ela não escapar, como se estivesse a caçar um animal.

Tendo em conta a sua beleza, levou-a consigo para casa onde cuidou dela, lhe ensinou a falar português e lhe deu uma educação básica para se tornar numa pessoa civilizada, desde questões tão básicas como saber comer a uma mesa ou simplesmente tomar banho.

Entretanto, o meu avô paterno (um dos filhos do meu bisavô), nos contactos diários com a índia, apaixonou-se por ela e acabaram depois por casar. Ela, apesar de ter muitos traços fisionómicos de uma índia, era de cor de pele muito escura, resultante da mistura com os genes do seu pai, o tal negro africano que tinha sido escravo.

A recordação principal que tenho dessa minha avó é o facto de ela ser muito rude, agressiva com os outros e estar sempre acompanhada por perto da sua cachaça e de um cigarrinho feito à base de palha de milho seco.



O MEU AVÔ PATERNO

Os meus avós paternos, que viviam no Estado de Minas Gerais, tiveram 22 filhos (dos quais 6 eram mulheres), e naturalmente, o meu pai.



O meu avô paterno era um homem muito bom, mas muito rígido na educação dos filhos e toda a gente trabalhava por igual para alimentar a família, na colheita de café, no tempo em que o café era ouro como diziam os fazendeiros. O meu pai foi criado no tempo em que as crianças eram postas para trabalhar de sol a sol como se fossem empregados sem salário.



O meu avô paterno morreu vendendo frutas num mercado local no estado do Paraná com 92 anos de idade.

QUEM CORRE POR GOSTO NÃO CANSA (O MEU PAI ADOPTIVO)

O meu pai, após a sua adolescência esteve bastante tempo afastado da família, vivendo e trabalhando noutros Estados. Todavia, quando os meus avós paternos se deslocaram de Minas Gerais para o Paraná, ele regressou para junto deles. Algum tempo depois, conheceu a minha mãe e tornaram-se amigos.



Passado algum tempo, o meu pai pediu namoro à minha mãe e ela aceitou com a condição de que ele deixasse todas as outras namoradas. O problema é que nessa altura, o meu pai era muito namoradeiro e tinha sempre namoradas em várias cidades vizinhas, tendo mesmo ficado noivo de várias ao mesmo tempo. Não havia nenhuma semana que não fosse visitar pelo menos duas delas.



Quando o meu pai já estava noivo da minha mãe, depois de terem namorado durante um período apreciável, ainda tinha compromisso firmado com mais duas noivas. Na altura, o meu pai precisava de mudar de cavalo com frequência pois, para tantas deslocações, precisava de um animal sempre em excelente forma para não se atrasar nos encontros e que estivesse preparado para fugir rapidamente, nos casos de aflição, e que não foram poucos.



Escusado será dizer que, a situação do excedente de noivas acabou por ser descoberta, tendo gerado uma enorme confusão, mas depois acabou por terminar tudo bem, embora com muitos cavalos cansados…

O DESTINO DA MINHA AVÓ MATERNA

Um dia o meu avô materno que, na altura tinha cerca de 35 anos, estava de regresso à sua fazenda conduzindo, com a ajuda dos seus peões, uma grande manada de gado que tinha acabado de comprar. Então numa certa noite, pediram para pernoitar na casa de um homem que trabalhava numa fazenda. No dia seguinte, quando estavam a tomar o pequeno-almoço à mesa do tal homem, o meu avô viu as filhas dele a servirem e perguntou-lhe se ele tinha alguma filha para casar. O sujeito disse-lhe que das suas quatro filhas, poderia escolher qualquer uma, excepto a mais nova porque só tinha 9 anos.



Então, o meu avô olhou para as três mais velhas e escolheu a moça que viria a ser a minha avó, que então tinha apenas 11 anos. Passados poucos instantes, e sabendo que não poderia reagir, aquela criança assustada já estava sendo levada na garupa do cavalo do meu avô, olhando para trás de cabelos ao vento, e indo para um local desconhecido, sem perspectivas de voltar a ver, em vida, os seus pais ou irmãs.



Era uma criança, meu Deus… que ainda nem sequer tinha tido a sua primeira menstruação e nem sequer sabia o que isso era. Apenas levou a sua alma agarrada àquele corpinho de menina com as roupas que tinha vestido naquela manhã.



Apesar desta interrupção trágica da sua infância, a minha avó foi morar numa grande fazenda com bastante gado. O meu avô era um fazendeiro com muito dinheiro e ofereceu-lhe boas condições de vida em que não lhe faltava nada de material. A minha avó tinha uma dama de companhia e muitos serviçais para assegurar a realização de todas as tarefas domésticas, incluindo várias cozinheiras.



Além do mais, o meu avô era também bastante carinhoso com ela. Ele viajava muito em actividades de compra e venda de gado, encontrando-se, por vezes, afastado da sua fazenda, por semanas a fio.

Sempre que o meu avô estava fora da fazenda, a minha avó, tentava encarnar um pouco a pele de criança que lhe havia sido tão brutalmente arrancada, brincando com bonecas, que escondia quando ele regressava.



Aos doze anos, a minha avó deu à luz o seu primeiro filho, e só descobriu o que era a menstruação depois de ter sido mãe.

Com o passar do tempo, a minha avó aprendeu a admirar o seu marido e a amá-lo, pois ele era muito dedicado a ela. O meu avô Frederico era um homem bem alto, bonito e cheio de encantos. Embora eu tivesse quase três anos de idade quando ele morreu, lembro-me bem dele já velho mas bonito, com aquele bigode e chapéu de cowboy na cabeça castanho claro.



Os meus avós maternos, enquanto viveram no Estado do Ceará, tiveram 24 filhos, dos quais cinco eram mulheres. O meu avô passou a ser cada vez mais severo e tinha uma forma bastante prepotente de lidar com os seus filhos, batendo-lhes sempre pelas mais pequenas coisas com pau ou chicote. À medida que o tempo passava, revelava-se cada vez mais duro com os seus próprios filhos, tendo chegado a meter filhos homens no tronco dos antigos escravos para lhes bater com o chicote.



Agarre as palavras e siga-me...

ATENÇÂO:

O próximo capítulo de Vidas Interrompidas chamar-se-á “4ª Parte - Infâncias destruídas” e terá os seguintes episódios verídicos:

1) A fuga da minha tia Marta
2) A tragédia de Marília
3) A recuperação do meu pai adoptivo

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

2ª Parte - A minha adopção!!!



Ao encontrarem-me, D. Fátima e os meus irmãos, que ela mesma tinha adoptado, levaram-me para sua casa e, em seguida, foram em busca de socorro.

Levando-me para o único hospital da pequena cidade onde nasci, o médico imediatamente se assustou com o estado daquele pequeno ser, um pequenino pedaço de gente com seu corpo multilado pelos insectos e formigas que ali se encontravam no local do abandono. D. Fátima foi logo dizendo que me havia encontrado ainda com vida e agarrada ao cordão umbilical, facto que parecia impossivel por terem passado tantas horas depois do parto.

Segundo disseram os médicos, tratou-se de um verdadeiro milagre. Não pedi para nascer assim mas Célia determinou que assim fosse!!! Depois de ter ficado alguns dias no hospital, o médico deu-me alta para ir para casa e disse à D. Fátima que não podia fazer mais, pois era dificil prever se eu sobreviveria a tantos ferimentos e queimaduras deixadas pelo veneno das formigas.

Apesar de tudo, D. Fátima, confiante, trouxe-me para sua casa e, com cuidado, me tratou de acordo com as suas possibilidades. Nessa altura, ela estava viúva e tinha sete crianças em sua casa para sustentar, das quais, cinco eram meus irmãos. Como D. Fátima não tinha um colchão de água para eu repousar, ela deitava-me numa pequenina bacia forrada com folhas de bananeira para não gravar mais as grandes queimaduras do meu corpinho indefeso

A partir daí fiquei conhecida na cidade como sendo a menina da bacia, pois era assim que a D. Fátima me chamava.

A minha irmã mais velha, que na altura tinha 12 anos, ficou encarregue de cuidar de mim, principalmente para mudar-me as fraldas, dar-me banho e mamadeira, enquanto a D. Fátima trabalhava como lavadeira. Apesar da sua pequena estatura a minha irmã foi muito corajosa e esteve à altura de cuidar de um bebé frágil e cheio de problemas de saúde.

Passados alguns dias, sem nenhuma novidade, apareceu lá em casa uma senhora chamada D. Carmem que me levou consigo para adopção, mas que teve de me devolver, conforme já contei no 1º capitulo desta história, por ter, entretanto, ficado grávida e também já ter um outro filho adoptado para cuidar, chamado Samuel, que também é meu irmão.

Então, passados 3 meses, no dia 3 de Abril de 1973, fui finalmente adoptada por um casal que passou a cuidar de mim com toda a atenção e amor e que são hoje os meus pais e a minha vida!!!

A partir desse dia, a minha vida mudou e tomou um novo rumo! D. Elsa e o Sr. João resolveram adoptar-me porque já estavam casados há 7 anos e nunca tinham conseguido ter filhos. De facto, eles não esperavam adoptar uma criança doente e sem muitas hipóteses de sobreviver, mas apaixonaram-se por mim e, a partir desse dia, decidiram apostar na minha recuperação.



Durante o primeiro ano de vida, eu estive sempre doente e longe de ser uma criança normal. Durante seis meses de vida não tomei leite pois o meu estômago não suportava nenhum alimento forte que, tomado, logo passava mal. Então, era alimentada com água de coco, água com açúcar e chá.

Talvez seja difícil de acreditar, mas foi assim que eu sobrevivi. Acredito que mais importante do que aquilo que eu bebia, tenha sido o amor, a dedicação e a vontade da minha mãe adoptiva em me manter viva e me querer ver curada. A minha mãe foi o meu sol... Ela foi a minha luz ao fundo do túnel, por me ter dado forças para vencer a doença e me ajudar a permanecer viva no meio de tanta dor e sofrimento!

Sempre que os meus pais iam comigo ao hospital, o médico dizia que dificilmente eu iria sobreviver e que eu precisava de um atendimento médico mais elaborado que não existia naquela região. Mas eles não desistiram, pois o amor que já tinham por mim era muito grande e não queriam viver a dor de me perder.

À medida que tinham de pagar os tratamentos de que eu necessitava, foram vendendo aos poucos os bens que possuíam, até ficarem praticamente sem nada. Nessa altura, tiveram de passar a morar numa casa emprestada pelo irmão mais velho da minha mãe, que sempre fez de tudo para os ajudar.
Então eles venceram e eu sobrevivi...



O amor dos meus pais adoptivos me alimentou e me pôs de pé para a vida. Eles provaram que vale a pena lutar pelo sonho de serem pais mesmo que eu não tenha saído de dentro das suas entranhas. Acreditaram que eu era realmente a sua filha e sonhavam em ver-me crescer, estudar, formar, namorar e até subir a um altar carregada pelas mãos de meu pai. Sonhavam com os seus netos e com uma linda família, unida e em paz!

Na verdade nem tudo foi assim, mas no decorrer da história saberão porquê...

Eles sabiam que eu era a filha dos seus sonhos, uma criança nascida da prostituição, gerada sem nenhum amor, nascida sem nenhum cuidado e jogada como um animal, mas que agora era a filha querida para o resto das suas vidas!!!



A Célia continuou o seu caminho, e eu passei a seguir o meu!!!!

Com amor, dedicação e determinação vence-se tudo, e eu e os meus pais vencemos!!!!



Agarre as palavras e siga-me...

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

1ª Parte - Os caminhos de Célia...

Célia era uma mulher que vivia numa cidadezinha do interior do Estado do Paraná, no Brazil, onde todos conhecem a vida uns dos outros, mesmo ainda nos dias de hoje. Ela levava uma vida simples de doméstica numa casa humilde onde cuidava do seu marido e dos seus 5 filhos, entre meninos e meninas.

Célia casou-se cedo, digamos que cedo até demais, por volta de 1962. Eram tempos em que as mulheres ainda eram vistas essencialmente no papel de esposas, mães e donas de casa. Por esse motivo, ela não trabalhava fora e pensava que sua vida ia ser de dona de casa, mãe e esposa até o fim de seus dias, como naquele tempo todas as mulheres pensavam ser.

A pequena casa onde a família de Célia morava era, na verdade, um anexo da serralharia em que, Raúl, seu marido trabalhava todos os dias. O ambiente sonoro em casa misturava os sons mais domésticos com a barulheira das máquinas que cortavam e torneavam a madeira.



Raúl era um homem trabalhador mas que, como muitos outros homens, gostava de realçar a sua virilidade com o consumo de bebida e as relações amorosas com outras mulheres. Assim, Raúl, tinha uma amante, cujo facto, naturalmente, era na altura do desconhecimento de Célia.

Um certo dia, Célia foi surpreendida por um acontecimento trágico que iria mudar para sempre o rumo da sua vida.

Raúl discutiu com o seu patrão e foi despedido do trabalho, devido a um qualquer mal entendido. Então, segundo contam, Raúl chegou em casa, arrumou todos os seus pertences e foi embora, para sempre, deixando para trás a sua mulher e os seus 5 filhos.

Célia ainda permaneceu algum tempo na casa da serralharia, mas todos a olhavam com olhos venenosos, achando que ela não tinha mais o direito de ali morar pelo facto do ex-marido já ali não trabalhar e ter sido vista como uma mulher separada.

Os dias foram passando, e agora, sem dinheiro, a fome foi batendo à sua porta com 5 crianças pequenas e ninguém a ajudar. Sem trabalho e ainda morando de favor na casa do ex-patrão do seu ex-marido, acabou por tomar uma decisão dramática.



Saíu de casa com os seus 5 filhos e na praça da igreja desta pequena cidade, começou a chamar a atenção de quem passava. Então, dizendo que não tinha dinheiro e comida, e que não conseguia criar os filhos, pedia, por favor, a quem quisesse, que os levasse um a um

A cena trágica foi comovendo toda a cidade. Ela continuava firme e insistia, dizendo: - Levem-nos! Pois não posso mais deixá-los passar fome!!! Então, apareceu uma pessoa interessada em ficar com uma das crianças. Conforme contam, dava dó de ver as crianças pequenas gritando e segurando na saia e nas pernas da mãe para não as levarem. Sem entenderem nada do que se estava passando, os irmãos agarravam-se uns aos outros para ficarem unidos e impedir que levassem algum.

Esta cena repetiu-se por várias horas na praça, até que uma senhora, mãe de 2 filhos, disse que ficaria com os cinco. Esta senhora, uma moça ainda jovem, disse à Célia, perante os olhos assustados das crianças: - Eu fico com os cinco e pode seguir a sua vida, Célia, e quando quiser ver seus filhos pode vir vê-los pois estarão bem cuidados por mim.

A surpresa de Célia foi ainda maior quando se apercebeu que esta senhora, era a D. Fátima, a esposa do ex-patrão de Raúl.

Assim, a D. Fátima, levou as crianças para casa e Célia seguiu o seu caminho, pensando que assim seria mais fácil para os seus filhos.

No caminho duro que seguia, e após alguns dias, Célia recebeu uma proposta para ser mulher de limpeza de um bordel da cidade.

Ao trabalhar, Célia percebe que as mulheres daquela casa estavam bem vestidas e sempre sorrindo, eram mulheres novas e bonitas e ganhavam muito dinheiro durante a noite.

Em certa altura, o Sr. José, um cafetão da cidade, homem ordinário e de mau carácter, pergunta se ela quer fazer parte do salão à noite, e ela aceita.



A Célia era uma mulher muito bonita, vistosa, de cabelos loiros cacheados, olhos azúis e seios fartos e firmes. Assim, rapidamente, se tornou o objecto da preferência de muitos clientes, entregando-se e perdendo-se cada vez mais. A pureza, a inocência da mulher e a esperança da mãe em um dia recuperar os seus filhos perderam-se ali.

O tempo foi passando e Célia, foi ficando cada vez mais popular na cidade, tendo começado a atender os seus clientes também durante o dia. Até que, em certa altura, para sua surpresa, confrontou-se com uma grávidez inesperada, mais uma vida, mais um ser dentro de si.

Célia continuou a prostituir-se durante os seus nove meses de gravidez, até mesmo no próprio dia do nascimento do seu filho, que foi assistido por uma parteira, que era a D. Fátima, ou seja, a mesma mulher que tinha adoptado os seus 5 filhos.

A pedido da Célia, a D. Fátima ficou com esse bebê que depois deu, para adopção, a um casal da região.

A Célia continuou a sua vida de prostituição durante muitos anos e das muitas vezes que ficou grávida, deu os seus filhos à D. Fátima que, por sua vez, os dava para serem adoptados. Mas os primeiros 5 filhos de Célia, a D. Fátima continuou a criar.

Um certo dia, a Célia apaixonou-se por um homem casado que frequentava a casa de prostituição. Porém, sem esperar novamente, Célia ficou grávida mais uma vez, e o seu amante rompeu com ela afirmando que apenas ficaria se ela abortasse a criança.

Célia entrou em desespero, e começou a tomar medicamentos para tentar abortar, mas como não conseguiu, foi abandonada por aquele homem.

Durante os nove meses da gravidez, a Célia tentou abortar por várias vezes, mas sem sucesso, olhando para a criança que trazia no ventre, que era o fruto do seu amor pelo outro homem, como a responsável pela perda do seu grande amante.



Quando chegou o dia em que essa criança tinha que nascer, Célia, determinada, mesmo com enormes dores de parto, saíu do seu prostibulo e foi até à sua antiga casa, que naquela altura já estava abandonada e caía aos pedaços.

Assim que tem a criança, Célia coloca-a dentro de uma caixa de papelão, e deixa-a lá assim mesmo, e vai-se embora, abandonando aquele pedaço de gente, deixando um pouco de si para trás. No fim do dia, Célia, ainda deitada, tentando ficar em recuperação, resolve procurar a D. Fátima para lhe contar o que aconteceu e depois volta para o prostíbulo.

A D. Fátima saiu correndo à procura do bebé, com a ajuda das suas crianças, pelo quintal sujo de mato da velha casa.

Finalmente, encontra a criança recém nascida, quase sem vida, ainda suja pelo sangue do parto e coberta de insectos e muitas formigas lava pés, que arrancavam pedacinhos do seu corpo indefeso.

Conforme contou a D. Fátima, as formigas lava pés arrancaram todas as unhas dos pés e das mãos dessa criança, que ficou toda cheia de queimaduras dos venenos deixados pelas formigas. Esta pobre criança ficou com queimaduras graves e o seu estado de saúde agravou-se muito.

A D. Fátima, que nessa época já era viúva, ficou desesperada sem saber o que fazer pois não tinha condições de cuidar de mais uma criança, que, por sinal, os médicos diziam que não iria sobreviver.

Esta criança que ficou com o seu estômago muito afectado de tanta fome que passou, não podia tomar leite e apenas chá. Durante 3 meses esta criança era apenas couro e osso e tinha de ficar deitada despida sobre folhas de bananeira.

Um dia, a Carmem, mulher casada havia dois anos, e que tinha já adoptado um outro filho da Célia chamado Samuel, achou por bem levar consigo esta criança e criar os dois irmãos juntos. Contudo, o destino quis que esta mulher ficasse grávida, e assim, passados 15 dias, ela devolve a criança à D. Fátima, por não ter condições para criar três filhos.

Porém, após três meses desta criança ter nascido, no dia em que a Carmem devolve a criança, a D. Fátima entrega-a a um outro casal.

Esta criança indesejada e abandonada pela sua própria mãe, viveu durante um ano inteiro em tratamentos intensos e, em permanente perigo de vida. Todavia, sob muitos cuidados, esta criança, encontrou uma chance de vida junto de uma nova família que quis adoptá-la e dar-lhe todo o amor que ela necessitava.

Esta criança que sobreviveu à dor das mordeduras das formigas e das picadas dos insectos, que sobreviveu aos remédios para abortar, que sobreviveu ao abandono mais ignóbil da sua própria mãe, e que nasceu num dia lindo de 1973, sou eu!!!

Sim, sou eu... vertendo lágrimas de extrema dor, ainda hoje, com 34 anos, sempre que me lembro deste abandono a que fomos votados, não pelo destino, mas pelas mãos de uma mulher fria, sem escrúpulos, que interrompeu as nossas vidas.

Assim começa a minha história...

Agarre as palavras e siga-me...